Esperado pelo mercado por muito tempo, o Preço de Liquidação das Diferenças (PLD) em base horária entrou em vigor no início de janeiro, trazendo perspectivas de menos volatilidade, mais previsibilidade nos preços e novos produtos para comercialização. Ainda pairam dúvidas e a expectativa de um mercado menos “nervoso”, mas entre preocupações e expectativas, a percepção é de que a mudança traz novo ânimo para a comercialização de energia, com a oferta de novas modalidades financeiras e contratuais.
Referência de preços para o setor elétrico, o PLD horário estava previsto desde meados da década de 90, nas discussões que pautaram a reformulação do marco regulatório do setor, conhecido como Projeto Re-SEB, mas não avançaram. O preço semanal se impôs, com a aplicação por submercado (Sudeste/Centro-Oeste, Sul, Norte e Nordeste) e por patamar de carga – leve, média e pesada.
O PLD sempre foi associado ao Custo Marginal de Operação, calculado pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) nos mesmos modelos matemáticos, Newave e Decomp, mas com limites mínimo e máximo, a fim de evitar prejuízos a geradoras e consumidores.
A modalidade semanal sempre fez sentido porque a geração de eletricidade no Brasil era predominantemente hidrelétrica, correspondendo a aproximadamente 90% da matriz de energia elétrica, e complementada por térmicas a gás e carvão – as usinas a óleo foram majoritariamente utilizadas nos Sistemas Isolados.
No entanto, a matriz elétrica começou a se diversificar, com a entrada de fontes renováveis, crescendo gradual e constantemente ao longo dos últimos anos. Hoje, as hidrelétricas possuem cerca de 70% de participação na matriz, sendo o restante dividido por térmicas a gás, carvão mineral, usinas eólicas, solares, à biomassa, além das nucleares, geradoras a óleo e pequenas hídricas.
“Estamos adotando o preço horário no momento certo”, afirma Talita Porto, vice-presidente do conselho de administração da CCEE, acrescentando que o mercado está pronto para a modalidade por causa da preparação que vem sendo feita desde 2018.
Assim, a base horária passou a ser considerada como um avanço porque permite a criação de novas modalidades de contrato e uso mais flexível da energia, além de viabilizar o surgimento de novas tecnologias, como o armazenamento – já que as baterias podem guardar a energia estocada para uso nos horários mais caros, replicando o comportamento de quem utiliza geradores a diesel, por exemplo.
Outro caminho que ganha atenção é o da autoprodução – já que consumidores passam a se blindar das variações de preço, com espaço para venda de excedentes. Neste campo, a solução do impasse do risco hidrológico, que travou o mercado por anos, e que está em vias de ser adotada, não significa apenas o destravamento de aproximadamente R$ 500 milhões em créditos para geradores à biomassa, especialmente de usinas a bagaço de cana, mas também a oportunidade de modernização de usinas antigas ou expansão da geração.
Ou ainda a construção de novas usinas, para autoprodução. Neste caso, cresce a perspectiva de consumidores especiais aproveitarem o vácuo regulatório da revisão das regras de micro e minigeração distribuída, que visa reduzir subsídios.
O planejamento também passa a ser mais intensivo, abrindo espaço para que os consumidores possam diminuir suas cargas quando o preço estiver mais caro e elevar o consumo quando o preço for mais baixo. Com isso, consultorias e assessorias especializadas em mercado livre, além das próprias comercializadoras, podem aumentar receitas com clientes que não conhecem os caminhos do mercado, mas querem aproveitar os benefícios potenciais.
PLD e limites menores para migração
Afinal de contas, a entrada em vigor do PLD coincide com outra importante medida em andamento no mercado livre: a redução dos limites de migração, que vem em andamento há dois anos.
Desde o primeiro dia do ano, consumidores com carga de, no mínimo, 1,5 MW, podem migrar para o mercado livre por completo, ou seja, com liberdade para comprar energia de qualquer fornecedor – clientes com carga acima de 0,5 MW podem migrar, desde que a aquisição seja feita por fontes renováveis.
As reduções de limites são acompanhadas pelo ritmo intenso de migrações, com média mensal na casa dos 150 consumidores, segundo a CCEE.
“Com a transição do modelo de precificação da energia para um mais simples de ser acompanhado pelo mercado consumidor, o cliente que desejar consumir energia e liquidar no mercado de curto prazo ao PLD terá o benefício de previsibilidade dos valores, podendo ainda estabelecer um planejamento de deslocamento do consumo para os horários em que a energia seja mais barata”, avaliam as advogadas Gabriella Maranezi Najjar e Amanda Malícia, do escritório Vella, Pugliesi, Buosi, Guidoni, em artigo.
“Isso vai refletir melhor se numa hora do dia nós temos escassez ou sobras de energia”, complementa Marcos Keller, diretor de Regulação e Mercado da Engie Brasil Energia, em debate realizado pela plataforma de conteúdo Além da Energia, da companhia.
A mudança de estratégias é nítida: um estudo comparativo com base em dados de 2019 feito pela consultoria Thymos Energia mostrou que com a entrada do preço horário, as hidrelétricas do Mecanismo de Realocação da Energia (MRE) que optarem por liquidar parte dos seus contratos no mercado spot poderão perder R$ 1,5 bilhão em um ano, em comparação com o sistema de precificação em vigor até 31/12.
Paralelamente, graças à flexibilidade operacional que possuem, essas hidrelétricas poderão oferecer aos grandes consumidores contratos com modulação horária de modo a que eles possam mitigar seus riscos mantendo suas curvas de cargas flat, permitindo a essas usinas obter um ganho de R$ 500 milhões sobre o sistema anterior. No balanço de efeitos negativos e positivos, as usinas do MRE teriam uma perda de R$ 1 bilhão.
Modulação
Modulação, por sinal, é algo que será mais ouvido no mercado. A modulação é um parâmetro contratual que permite aos consumidores definir como a curva de carga vai ser distribuída ao longo do período de fornecimento.
Com a base horária, os contratos podem ser oferecidos com modulação conforme o perfil de consumo ao longo do dia, protegendo-se à variação horária, tirando o reinado da modulação “flat”, ou seja, a distribuição da carga de forma igualitária ao longo do dia – algo que fazia mais sentido no preço semanal.
E mesmo no mercado financeiro o potencial tende a crescer, com a oferta de produtos de preços, para hedge ou investimento. Um passo foi dado com a criação de uma plataforma de energia pela B3, entre outras iniciativas, que podem evoluir para a consolidação de um mercado de derivativos ou mesmo uma bolsa de energia.
Na plataforma, os contratos cadastrados podem permitir a criação de uma curva “foward”, projetando preços futuros, como explica Ana Beatriz Vieira de Mattos, superintendente de Novos Negócios da B3.
Ou, como Ana Beatriz denomina, um espaço para derivativos listados, com contraparte central, o que poderia ser concretizado entre dois e cinco anos. “Depende da adesão do mercado, da vontade de negociar pelo mercado”, salienta.
Por sinal, a nova modalidade de preço ganhou força nos últimos anos por causa da volatilidade acentuada do preço a cada semana, fruto de mudanças estruturais no regime de chuvas, no perfil de consumo e na base geradora. A simples perspectiva de mais ou menos chuvas se tornou suficiente para impactar de forma relevante na formação de preços.
A “volatilidade inexplicável” entrou na pauta da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). Em dezembro, o presidente do conselho de administração da entidade, Rui Altieri, manifestou preocupação com mudanças no nível de afluências entre uma semana operativa e outra, que resultaram numa queda da ordem de 60%, mesmo com reservatórios ainda em baixa.
Altieri, da CCEE: volatilidades inexplicáveis na mira
Como os reservatórios estavam baixos na ocasião (como ainda estão) e o governo vinha adotando ações como acionamento de todo o parque termelétrico e importação de energia, não fazia sentido a redução de preços em mais de 60% apenas com a expectativa maior de chuvas, na avaliação do executivo.
Os primeiros dias do PLD
A base horária começou a ser utilizada ainda em 2019, mas sem fins comerciais. A chamada “operação sombra” ocorreu para que inconsistências pudessem ser verificadas e corrigidas a tempo.
Entre as novidades do PLD horário está a divulgação do preço, que passa a ser diária, com a fixação de todos os preços para cada hora do dia seguinte, e a existência de dois tetos. Um deles é o estrutural, de R$ 583,88/MWh, e o horário, de R$ 1.197,87/MWh.
A Aneel adaptou ainda a regulação a fim de conciliá-la à nova formação de preços. A Resolução Normativa nº 843/2019 estabelece os critérios e procedimentos para elaboração do Programa Mensal da Operação Energética (PMO), para a formação do Custo Marginal da Operação (CMO) e do PLD.
Em linhas gerais, a semana operativa continua a mesma – da meia-noite de sábado até 23:59 horas da sexta-feira subsequente.
Uma das principais mudanças tem relação com o chamado modelo de despacho hidrotérmico de curtíssimo prazo, a fim de estabelecer operação de mínimo custo, para um período de até duas semanas, com discretização em patamares cronológicos com duração mínima de meia hora (base semi-horária).
Além disso, o horário limite para divulgação do CMO e do PLD deve estar previsto, respectivamente, nos Procedimentos de Rede (ONS) e nas Regras ou Procedimentos de Comercialização (CCEE).
Ao analisar o processo de revisão da resolução, o diretor da Aneel Sandoval Feitosa disse que o mercado deve esperar novos aprimoramentos na regulação para ajustar eventuais novas demandas surgidas em função do preço horário.
“Como se trata de uma revisão focada exclusivamente em aspectos formais, uma avaliação mais completa sobre outros possíveis aprimoramentos do ato normativo permanecerá como atividade indicativa da Agenda Regulatória em 2021, principalmente porque novas demandas devem ser identificadas à medida em que os processos evoluam naturalmente”, afirmou Feitosa.
Feitosa, da Aneel: novas mudanças na regulação podem ocorrer com PLD horário
Com a virada de chave, o que se verificou inicialmente foi um ambiente de normalidade, sem muitos problemas. Nos primeiros dias, todos os submercados tiveram preços iguais em cada hora do dia, mas com uma volatilidade importante entre os dias.
Na visão de Talita, da CCEE, essa tranquilidade não é surpresa e os preços vêm demonstrando comportamento alinhado com as expectativas da instituição. “Notamos que está bem próximo do que esperávamos, refletindo o cenário atual de geração e consumo”, salienta.
Para se ter uma ideia, o preço mínimo obtido no dia 04/01, a primeira segunda-feira do ano, foi de R$ 273,89/MWh para todos os submercados, com máximo de R$ 309,34/MWh – os preços dos três primeiros dias de 2021 refletiram o feriado e o fim de semana.
Quando se compara a faixa de preço com o PLD semanal que valeria na primeira semana de 2021 (de R$ 287,82/MWh), verifica-se que o nível de preços é compatível com o cenário energético atual, sem distorções.
Mas quando se compara com o primeiro dia do ano, fica visível que o preço dos primeiros dias foi influenciado pela baixa carga que é característica do período.
De acordo com a CCEE, o período das 14:00 horas às 15:00 horas foi o que apresentou os valores mais elevados do PLD, enquanto os intervalos da madrugada e do início da manhã registraram os valores mais baixos. Já durante o feriado de Ano Novo e o final de semana, os horários das 19:00 horas às 21:00 horas registraram os picos de preço, contrapostos pelo começo do dia, entre 6:00 horas e 7:00 horas.
Fonte: CCEE, elaboração Brasil Energia
Riscos externos
Um dos temores é o do recálculo de preços ou de interferências externas que tornem o PLD horário menos confiável. Recentemente, uma resolução da Agência Nacional de Águas (ANA) alterou restrições de vazões do rio São Francisco, refletindo diretamente nas afluências e impactando na formação de preços.
As vazões são a base da chamada Energia Natural Afluente (ENA), cujos valores são utilizados como parâmetro para o cálculo do PLD.
A ANA decidiu flexibilizar restrições na bacia do Rio São Francisco, resultando num preço diferente do estimado pelo mercado. As mudanças foram divulgadas na noite de 03/12, uma quinta-feira, depois de feitas as projeções de preços para a semana operativa seguinte, que seria anunciada na sexta-feira.
Na prática, a decisão chegou ao conhecimento do mercado às 8:00 horas da sexta-feira (04/12), sem tempo de permitir alterações nas previsões. A Associação Brasileira de Agentes Comercializadores de Energia (Abraceel) enviou ofício à Aneel protestando contra a decisão e o BTG Pactual impetrou recurso alegando que a Resolução 07/2016 do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) estabelece um prazo de 30 dias para que novos novos parâmetros entrem em vigor em caso de mudanças.
As previsões das empresas indicavam um PLD na casa dos R$ 200/MWh, mas com as novas defluências, o preço fechou em R$ 270/MWh.
O recurso foi acatado em parte pela Aneel, suspendendo os efeitos da resolução da ANA na formação do PLD, mas apenas para a semana operativa entre os dias 26/12 e 02/01, e não no mês inteiro.
A votação no colegiado foi apertada, por três a dois, e no debate antes da deliberação sobre o recurso, apesar de aparentes divergências, diretores chamaram a atenção para o risco de perda de credibilidade ao se tomar decisões que coloquem a realidade da operação dissociada do mundo comercial.
“Há risco de perda de credibilidade com decisões desacopladas da realidade do sistema”, afirma Hélvio Guerra na reunião.
Fonte: Editora Brasil Energia
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